quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Insegurança pública: erro de diagnóstico

O Brasil está imerso em uma grave crise de insegurança pública. Homicídios em níveis epidêmicos, latrocínios em crescente, arrastões antes impensáveis se tornaram comuns, além, é claro, dos já cotidianos roubos à mão armada. A cada notícia destes crimes, também comum é o surgimento de inúmeros questionamentos sobre como se chegou a tanto, o porquê de seguirmos como campeões no número de homicídios anuais. Raros, entretanto, são os que efetivamente buscam resposta para estas perguntas, hoje já quase retóricas.
 
A resposta existe e não é tão complexa. O país paga hoje o preço por uma visão míope da segurança pública, sob a qual se implementou, há mais de uma década, uma diretriz central absolutamente equivocada para o combate à violência.
 
Quando o país começou a acompanhar mais efetivamente a evolução dos crimes de morte, descortinando a realidade de aqui se registrar uma quantidade de assassinatos maior do que as ocorridas em países em guerra, o diagnóstico alcançado pelos responsáveis pela segurança pública foi errado, e é este erro que, agora, está custando a vida do "paciente", no caso, a sociedade.
 
Diante da realidade grave retratada pelo quadro homicida, responsabilizou-se, não as crescentes atividades criminosas, especialmente o tráfico de drogas, mas o cidadão. Entendeu-se que quem estava matando não era o bandido que praticava o assalto e executava as vítimas, nem o traficante que entrava em guerra na disputa por pontos de venda de droga, ou o que eliminava rivais e devedores de dívidas não pagas. Isentou-se também os que, sob o efeito de drogas, cometiam atrocidades, matando sem piedade vítimas colhidas ao acaso ou com as quais tinham prévias desavenças, quase sempre ligadas ao comércio daquelas substâncias. Para o governo, quem matava era o cidadão comum.
 
Na enviesada lógica governamental, os cinquenta mil homicídios anuais eram fruto de brigas de marido e mulher, desentendimentos de vizinhos, brigas de bar ou conflitos no trânsito. No diagnóstico oficial, o cidadão brasileiro era, por natureza, homicida.
 
Feito o estapafúrdio diagnóstico, deu-se início ao "tratamento". Ao invés de se combater o avanço e a estruturação das organizações criminosas, o objetivo era desarmar o cidadão. O porte e a posse de armas foram dificultados, criou-se o Sistema Nacional de Armas - SINARM e aplicou-se o elixir miraculoso que acabaria com todos os males: o estatuto do desarmamento.
 
Houve, é verdade, até uma consulta ao paciente para saber se ele concordava com o tratamento. A resposta veio no Referendo de 2005, com uma retumbante negativa à proibição das armas para os civis. Porém, os "doutores" não deram ouvidos ao desejo do paciente, enfocado como se buscasse a eutanásia, e prosseguiram com o tratamento contra à sua vontade, ampliando-o pela realização de sucessivas campanhas de "vacinação", traduzidas no desarmamento voluntário responsável por recolher já mais de 600 mil armas - justamente as não nocivas e em que consistiam as defesas do "organismo".
 
Como em qualquer tratamento equivocado, a enfermidade não foi debelada e os efeitos colaterais são sentidos pela população enferma. Nenhuma redução no quadro de homicídios e uma proliferação assustadora nos crimes, cada vez mais ousados, com investidas em locais públicos e mesmo com grande concentração de pessoas, a exemplo de shoppings centers, restaurantes e condomínios residenciais. A doença se espalhou e ficou mais forte.

O erro de diagnóstico precisa ser corrigido. O estado do paciente é grave e inspira cuidados urgentes e adequados. Do contrário, a metástase será inevitável e, com ela, o óbito. E há remédio? Sim, claro que há, mas ele é amargo, de uso prolongado, e se inicia pela eliminação do principal e mais nocivo vírus da violência: a impunidade.

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* Fabricio Rebelo é bacharel em direito, pesquisador em segurança pública e diretor da ONG Movimento Viva Brasil.
** Texto de livre reprodução, desde que na íntegra e com indicação autoral.

sábado, 27 de julho de 2013

Rebate sem conflito

A edição do jornal A Tarde da última quinta-feira publicou uma matéria, inclusive com minha participação, apontando que a Secretaria de Segurança Pública rebateu as conclusões do Mapa da Violência 2013, para apontar, não um aumento nos homicídios no estado, mas sua redução. A verdade, contudo, é que não há contraposição entre os dois dados.
 
Os números do Mapa da Violência 2013 se referem ao ano de 2011, o último compilado pela pesquisa, que toma por base os registros do Data Sus, do Ministério da Saúde. Já os números da SSP/BA são fruto do comparativo direto entre o mesmo período dos anos de 2012 e de 2013, conforme ocorrências registradas pela Polícia Civil.
 
Portanto, o fato de a SSP/BA defender uma redução da violência homicida no estado não se contrapõe às conclusões do Mapa da Violência 2013, que coloca Salvador como terceira capital mais violenta do Brasil e o município de Simões Filho como o recordista na taxa de homicídios.
 
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Fabricio Rebelo é bacharel em direito, pesquisador em segurança pública da ONG Movimento Viva Brasil e responsável pelo blog.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

A PEC 37 e a Lei da Ficha Limpa

Depois da chamada "PEC da Igualdade", que transformou os empregados domésticos em super empregados - direitos iguais aos demais, mas, ao contrário destes, sem possibilidade de descontos de moradia ou alimentação, além da ausência de impenhorabilidade do bem de família do empregador, em caso de execução trabalhista -, a proposta de emenda constitucional que mais se comenta agora é a PEC 37, apelidada de "PEC da Impunidade", que pretende retirar poderes de investigação do Ministério Público.

O assunto é frequente nas redes sociais, quase sempre em tom de indignação. Contudo, o que raramente se observa é que a PEC 37 pode ter um propósito muito mais político do que se imagina, produzindo um efeito prático diferente de simplesmente diminuir as atribuições do Órgão Ministerial.

Desde junho de 2010, vige no Brasil a Lei Complementar nº 135, conhecida como "Lei da Ficha Limpa", por cujos termos, dentre outros, se tornou inelegível o político condenado por decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado. A lei é tida como um grande marco da política nacional, comemorada por diversos segmentos da sociedade, que nela identificam uma forma de melhor seleção dos políticos brasileiros.

Uma particularidade prática dessa lei é que grande parte das ações movidas contra políticos e que podem determinar sua inelegibilidade resulta, justamente, da atuação investigativa do Ministério Público, especialmente a que culmina na propositura de ações penais contra chefes do Poder Executivo em municípios do interior, modalidade que se multiplica em nossos tribunais.

O Ministério Público, assim, é na prática peça fundamental para a efetividade da Lei da Ficha Limpa. Sem sua atuação, a inelegibilidade por condenação judicial prevista nessa norma queda-se muitíssimo reduzida, beneficiando os maus políticos.

Ao se pretender retirar do Ministério Público poderes investigativos, como o de instaurar inquéritos precedentes às ações penais, um grande efeito disso pode se verificar naquela que, nos últimos tempos, se tornou a mais comemorada lei brasileira, esvaziando sua eficácia. Resta saber se este é o propósito.

domingo, 10 de março de 2013

Mapa da Violência 2013 - O Fracasso do Desarmamento


Um dos parâmetros mais utilizados para a compreensão da violência homicida no Brasil, o “Mapa da Violência” apresenta, em sua mais recente edição (2013), dados que, mesmo com indisfarçável contaminação da ideologia desarmamentista, conduzem à conclusão que mais se alcança entre os estudiosos em segurança pública: as políticas de desarmamento não reduziram homicídios no país.

De acordo com o Mapa, publicado pelo Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos, foram mortas no Brasil, no ano de 2010, 38.892 (trinta e oito mil, oitocentos e noventa e duas) pessoas com uso de arma de fogo, quantidade que supera a registrada no ano 2000 em 3.907 (três mil, novecentos e sete) ocorrências - foram registradas 34.958 mortes naquele ano. Percentualmente, na década pesquisada, houve um aumento nas mortes por arma de fogo da ordem de 11,25%, computando-se acidentes, suicídios, homicídios e outras causas indeterminadas[1].

No mesmo período, de acordo com os dados disponíveis junto ao IBGE[2], a população brasileira sofreu um incremento de 12,33%, passando de 169.799.170 para 190.732.694 de habitantes. Portanto, para fins estatísticos e considerada a margem de variação inerente a qualquer pesquisa com parâmetros populacionais, os números se equivalem, não se podendo atribuir qualquer significação relevante à irrisória diferença de 1,08% entre o crescimento populacional e o de mortes por armas de fogo. O quadro pesquisado, assim, apresentou estagnação estatística.

A situação muda um pouco quando são isolados apenas os casos de homicídio. De acordo com o estudo, foram assassinadas com arma de fogo no país, no ano 2000, 30.865 pessoas, número que, dez anos depois, aumentou para 36.792[3], numa variação de 19,2%, ou seja, já expressivamente acima do crescimento demográfico.

Já numa primeira análise, portanto, os números comprovam que, entre os anos de 2000 e 2010, os índices gerais de morte por arma de fogo no Brasil praticamente variaram na mesma proporção de seu crescimento demográfico, com relevante aumento na taxa de homicídios com esse meio. Com isso, claramente já se pode observar que as amplamente difundidas políticas de desarmamento, implementadas no país no mesmo período, foram inteiramente ineficazes para a contenção de tal modalidade de crime.

A conclusão se reforça sobejamente quando são analisados os efeitos da política desarmamentista na circulação de armas de fogo no Brasil. No exato mesmo período de 2000 a 2010, o comércio de armas de fogo no país, em decorrência das legislações restritivas coroadas pelo atual estatuto do desarmamento, sofreu uma drástica redução, da ordem de espantosos 90% (noventa por cento).

Havia no país, no ano 2000, 2,4 mil estabelecimentos registrados na Polícia Federal autorizados ao comércio de armas e munições. Já em 2008, restavam apenas 280 (duzentos e oitenta). Em 2010, de acordo com diversas pesquisas promovidas por órgãos do próprio governo, organizações não governamentais e centros de pesquisa acadêmica, o comércio especializado de armas e munições se resumia a 10% (dez por cento) do que se verificava uma década antes[4].

Paralelamente a isso, campanhas de desarmamento, especialmente a fortemente realizada entre os anos de 2004 e 2005, precedendo o referendo deste último ano, retiraram de circulação cerca de meio milhão de armas entre a população civil brasileira[5], número que hoje já alcança, de acordo com dados oficiais do Ministério da Justiça, 618.673 (seiscentas e dezoito mil, seiscentas e setenta e três)[6].

Considerando que, de acordo com os dados do Sistema Nacional de Armas – SINARM, há hoje no Brasil pouco mais de 1,6 milhões[7] de armas com registro ativo, o total de armas recolhidas representa mais de 27,5% do universo somatório daquelas registradas e das já recolhidas. Em outros termos, comparando-se o total das armas hoje registradas e o daquelas que já foram entregues em campanhas de desarmamento, o arsenal legalizado brasileiro já foi reduzido em mais de 1/4 (um quarto) de seu total.

Numa realidade em que 90% do comércio de armas foi extinto no país e mais de seiscentas mil delas já foram retiradas de circulação, não resta qualquer dúvida de que, caso as armas legalmente possuídas pela sociedade brasileira tivessem vinculação com o número de mortes, os respectivos índices teriam sofrido igualmente significativa variação para menor.

Entretanto, consoante aqui demonstrado, mesmo com tamanha perseguição às armas de fogo, as mortes gerais por seu uso no país cresceram na exata mesma proporção do crescimento populacional, enquanto os homicídios aumentaram numa taxa acima deste. Em 2010, com 90% de redução no comércio de armas e mais de meio milhão delas já recolhidas, a taxa de mortes com seu uso no país o foi a mesma de uma década antes, com uma variação estatisticamente desprezível de apenas 1% (20,6/100mil em 2000 contra 20,4/100mil em 2010), ao passo em que a taxa de homicídios aumentou mais de 6% (18,2/100mil contra 19,3/100mil)[8].

Os números, mais uma vez, comprovam que inexiste relação direta entre a quantidade de armas em circulação entre a população civil e as taxas de mortes por seu uso. A drástica redução no acesso do cidadão brasileiro às armas de fogo não representou nenhuma contenção nas mortes em que elas são empregadas e não impediu o considerável crescimento dos homicídios no país.

A explicação é simples: leis restritivas à posse e ao porte de armas apenas desarmam aqueles que cumprem as leis. Porém, no Brasil ou em qualquer outro lugar, como já reconhece a própria ONU, na quase totalidade das vezes em que um homicídio é cometido com uma arma de fogo, quem puxa o gatilho é um criminoso habitual[9].



* Fabricio Rebelo | bacharel em direito, pesquisador em segurança pública e coordenador regional (NE) da ONG Movimento Viva Brasil.



[1] WAISELFISZ, Julio Jacobo - Mapa da Violência 2013 - Mortes Matadas por Armas de Fogo : CEBELA,  2013, p. 11.
[2] Censo 2010 – IBGE. Disponível em http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1766
[3] Ob. Cit., p. 11
[5]  http://www.brasil.gov.br/noticias/arquivos/2011/12/12/armas-de-fogo-mataram-mais-de-36-mil-em-2010-segundo-o-ministerio-da-justica
[6] Vide : http://blog.justica.gov.br/inicio/primeiro-mes-do-ano-registra-aumento-de-51-de-armas-entregues/
[7] 1.624.832 de registros ativos em 2012, segundo o SINARM.
[8] WAISELFISZ, Julio Jacobo - Mapa da Violência 2013 - Mortes Matadas por Armas de Fogo : CEBELA,  2013, p. 13.
[9] 2011 GLOBAL STUDY ON HOMICIDE – United Nations Office on Drug and Crime, p.10.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

O sinalizador e a maioridade penal.

A morte, durante um jogo do Corinthians na Bolívia, de um torcedor vítima de disparo de artefato sinalizador trouxe à tona uma série de questionamentos sobre o sistema jurídico-penal daquele país, onde todo um grupo de torcedores brasileiros foi detido pela autoria do crime. Por aqui, algo assim não seria natural, sobretudo em se considerando a inviabilidade da coautoria material delitiva para o disparo, e muito provavelmente, num idêntico episódio,  ninguém ainda teria sido preso. 

O desdobramento do caso, todavia, a par da discussão sobre a precisa identificação do autor do disparo, apresenta uma nuance muito mais comum aos juristas brasileiros: a culpabilização de um menor. Tão logo repercutida a lamentável ocorrência, que ceifou a vida de um adolescente de catorze anos, junto à revolta da torcida do time paulista com a prisão de alguns de seus integrantes, a solução surgiu de modo bastante simples, consubstanciada na apresentação de um menor de idade para assumir a responsabilidade.

Do ponto de vista exclusivamente jurídico, seria uma estratégia válida, comum a inúmeros casos de homicídio registrados no Brasil, onde se dissemina a praxe de incluir menores em ações delituosas, sobre os quais sempre recai a culpa por um disparo homicida em caso de prisão. Os articuladores da ideia só esqueceram de um detalhe, pois, na Bolívia, a maioridade penal não corresponde à daqui, mas a 16 anos.

O pretenso culpado do disparo, conforme indicado pelos advogados da torcida corintiana, está acima dessa idade e, portanto, poderá responder pelo crime praticado. Se condenado, cumprirá até 25 (vinte e cinco) anos de prisão.

Se muitos questionaram a legislação boliviana por permitir a prisão de doze pessoas por um homicídio em que apenas uma disparou um sinalizador em um estádio cheio, há algo sobre o que o país vizinho, inquestionavelmente, se mostra muito mais evoluído do que o Brasil: um limite menor para a maioridade penal.


Indexador: comentário; direito penal; cotidiano.

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Viva, mas não ostente.

Há alguns dias um amigo foi vítima da assombrosa violência que assola a capital baiana. Teve seu smartphone roubado por, segundo sua descrição, um moleque que não pesaria 50kg, mas que, como a esmagadora maioria dos criminosos, estava armado.

O fato seria só mais um para as tristes estatísticas da cidade, que vê uma crescente de criminalidade sem precedentes. Contudo, sua posterior discussão revela, mesmo entre amigos da vítima, a proliferação de um discurso perigoso e cruel: o de que a culpa foi dela.

"Quem mandou sair de iPhone e de bicicleta?" "Está pensando que está na Suíça?" "Vacilão!" Foram essas algumas das expressões usadas por quem comentou o episódio, esquecendo do criminoso, que obteve o produto do roubo com ameaça à vida da vítima, interrompendo uma simples atividade do cotidiano que, em outros tempos, seria comum.

A crueldade do discurso é latente, pois por ele a vítima é punida duas vezes. A primeira pelo fato óbvio de ter sido roubada; a segunda por se lhe atribuírem a culpa pelo evento, como se a responsabilidade sobre a subtração de um bem mediante ameaça não fosse de quem o subtraiu, mas de quem o possuía para ser subtraído.

O perigo dessa teoria tem duas faces. Uma delas é a fomentação de uma falsa sensação de segurança, pela qual se busca um verdadeiro autoconvencimento de que, não fosse a "irresponsabilidade" da vítima, não teria ela sido roubada. Portanto, basta não ser "irresponsável" que coisas assim não lhe afligirão. 

É mentira. A culpa por um assalto não é de quem tem o que ser roubado, mas sim, essencialmente, do elemento objetivo traduzido na falência da segurança pública brasileira, cuja estrutura simplesmente está muito aquém das necessidades da sociedade. Além disso, há o óbvio que muitos militantes de um deturpado rótulo de "direitos humanos" insistem em não admitir: a culpa primordial é do bandido, daquele que opta por violar a lei e conseguir de outrem, sem o esforço do próprio trabalho, aquilo que deseja.

O avanço no raciocínio do perigo é ainda mais grave, pois suas consequências se confundem com a qualificação de crueldade acima ilustrada. Se a "culpa" por ser roubado é de quem tinha o que roubar, a solução, então, é não ter? Ter e não usar? Usar, mas não mostrar?

Há alguns anos não havia incutida na sociedade essa restrição de costumes e, se um assalto ocorria, todos bradavam contra a falta de segurança e a ousadia dos então "malandros". Com o tempo, o malandro foi deixando de ser o exclusivo culpado e sua responsabilidade começou a ser dividida com a vítima, pois esta tinha o que atraía o roubo.

A partir de então, jóias à noite se tornaram um vacilo; depois um bom relógio, um tênis de marca, um bom carro, uma moto possante e agora, claro, os smartphones, preenchendo o rol de tudo aquilo que, se tivermos, não podemos  exibir ou usar em público, sob pena de justificar que sejam roubados.

É provável que muitos achem natural raciocinar assim, já que isso confere aquela pseudo-segurança de que basta não ostentar para não ser vítima. Esquecem-se, contudo, de que, mudando os bens em questão, é o exato mesmo raciocínio de quem quer justificar um estupro por uma saia curta.

Se um relógio roubado é culpa de quem o ostentou em público, a violação de uma mulher é culpa de sua exibição, por exemplo, de um belo par de pernas? A lógica - no caso, a falácia - é a mesma.

Embora absurdo sob qualquer prisma reflexivo, por mais tênue que seja, assusta ver tantos ditos esclarecidos pensando assim. Assusta mais a projeção disso para o nosso futuro; afinal, se a receita para não ser roubado é não ter o que roubar, qual será a receita para não morrer assassinado? 

Talvez ainda demore um pouco para que nossa percepção se realize nessa questão e, enfim, possamos abandonar a crueldade de se responsabilizar a vítima pela violência que sofre. Provavelmente isso ocorra quando um assassino for apresentado em uma delegacia como autor de um homicídio e alguém brade por ele algo do tipo "culpa da vítima, que - olhem que absurdo - saiu por aí viva!" Ou algo como "se não estivesse zanzando viva por aí, não teria morrido".

Até que este surrealismo de nossa insegurança pública nos deixe, se há, nesse contexto de distorções, um conselho a ser dado para não se tornar uma das 50 mil vítimas de homicídio anuais no Brasil, ele só pode ser: viva, mas não ostente.


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Por Fabricio Rebelo | bacharel em direito e pesquisador em segurança pública.


Texto de livre reprodução, desde que na íntegra e com indicação autoral.
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