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segunda-feira, 30 de abril de 2018

A prisão após a segunda instância sob a ótica dos capítulos de sentença

Como a Teoria dos Capítulos de Sentença, cada vez mais presente no Direito Brasileiro, pode explicar a possibilidade de prisão imediata de condenados em segunda instância.
Uma das inovações mais festejadas com a entrada em vigor do atual Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/15) foi a adoção expressa da Teoria dos Capítulos de Sentença, consagrando o entendimento de que uma decisão de mérito, quando prolatada, pode resolver mais de uma relação jurídica específica, produzindo efeitos próprios para cada uma delas. Ainda que se cuide de um instituto originário do Processo Civil, sua natureza bem pode se amoldar ao Processo Penal, com especial impacto nas discussões sobre a possibilidade de início do cumprimento da pena após a condenação de um réu em segunda instância.

Em contração sintética, os Capítulos de Sentença, magistralmente explicitados na obra de Cândido Rangel Dinamarco (Malheiros), definem as partes de uma decisão judicial que se resolvem em si mesmas, cada uma com consequências distintas das demais, especificamente quanto aos recursos que contra aquela sejam interpostos. Por essa teoria, se o recurso ataca somente parte da decisão, havendo nela resoluções outras que por ele não são impugnadas, estas se tornam imutáveis, transitando em julgado.

O clássico exemplo ilustrativo reside em uma hipotética demanda judicial em que um contratante postula contra o outro, cumulativamente, a resilição de um contrato e o pagamento de uma indenização por ocorrência de dano. Ao apreciar a questão, o juiz julga as duas pretensões procedentes, em face do que o demandado recorre, impugnando a fixação indenizatória, mas nada opondo quanto à ruptura contratual. Nesse caso, pela teoria em foco, a desconstituição do pacto se torna imutável, não mais passível de questionamento, ou seja, a questão é finda, restando discutir, apenas, o outro pedido – sobre a indenização.

A previsão expressa da teoria está incorporada aos artigos 966, § 3º, 1.009, § 3º, e 1.013, §§ 1º e 5º, todos do Código de Processo Civil de 2015, deixando inconteste que uma sentença se estrutura em capítulos, os quais podem ser impugnados autonomamente. Os que não forem, se tornam imutáveis, tanto que admitido seu pronto cumprimento (art. 523).

No Processo Penal, a teoria não encontra previsão expressa, ainda que se possa inferir sua essência quando analisadas as disposições legais sobre as distinções entre os efeitos da coisa julgada para a acusação e para a defesa. Nesse sentido, é claramente firmada a previsão de que, a partir do momento em que o órgão acusatório não interpõe recurso, para ele a sentença se torna imutável, somente podendo ser alterada em benefício do acusado.

As disposições podem ser objetivamente encontradas no Código Penal, quando se regula a prescrição. No aludido diploma, os artigos 110, § 1º, e 112, I, fazem expressa menção à sentença com trânsito em julgado “para a acusação”, ratificando a compreensão de que sua discussão, a partir de então, pode prosseguir apenas por iniciativa da defesa.

Mas não só a isso se resume a importância da compreensão das distinções acerca das partes da sentença que se tornam imutáveis e daquelas que continuam passíveis de debate nas instâncias ordinárias e superiores. O reflexo dessa compreensão também impacta diretamente a possibilidade de início de cumprimento da pena após se firmar a condenação do réu em segunda instância.

A questão se apresentou, recentemente, como a mais repercutida dentre os institutos jurídicos no país, fomentada pela ampla discussão havida no Supremo Tribunal Federal, derivada da situação do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, com condenação ratificada (e até ampliada) pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Mas, afinal, existe inconstitucionalidade em determinar o imediato cumprimento da pena após a decisão da segunda instância?

 O cerne dessa controvérsia repousa no princípio da presunção de inocência, consagrado como direito fundamental no art. 5º, LVII, da Constituição Federal, que assim exprime:

“Art. 5º .................
(...)
LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;”

Da atenta leitura do dispositivo constitucional, prontamente se percebe que há, ali, uma disciplina relativa ao juízo de culpa. Exige-se, para que alguém seja considerado “culpado”, uma sentença penal condenatória com trânsito em julgado, isto é, a coisa julgada relativa à formação da culpa.

A definição de coisa julgada em nosso ordenamento jurídico pode ser encontrada no art. 6º, § 3º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – Decreto-Lei nº 4.657/42, que assim prescreve:

“Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.
(...)
§ 3º Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso.”

Pois bem. Da exegese concatenada dos artigos 5º, LVII, da Constituição Federal, e 6º, § 3º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, alcança-se a inicial compreensão de que, no ordenamento jurídico pátrio, alguém somente poderá ser considerado culpado quando a decisão que assim reconhecer não admitir mais recursos.

A partir dessa compreensão, cumpre estabelecer em que consiste, em concreto, o juízo de culpabilidade.

Sob essa matriz de análise, há de se inicialmente registrar que uma sentença penal condenatória se decompõe, essencialmente, em duas partes fundamentais: a primeira, que firma a culpa do réu, e a segunda, em que se estabelecem suas penas e a forma de cumprimento. A culpa, por seu turno, se assenta sob duas vertentes: materialidade e autoria do crime.

A materialidade respeita à constatação de que, de fato, existiu a prática de uma conduta penalmente ilícita, ou seja, a infração a algum dos tipos penais previstos no próprio Código Penal ou em legislação especial, fruto de uma ação culpável do agente e sob circunstâncias que não elidem sua responsabilização. A autoria, por sua vez, implica reconhecer ter sido, efetivamente, o acusado que praticou a ação penalmente recriminada.

Vê-se, portanto, que o juízo de culpabilidade, assentado sobre materialidade e autoria delitivas, compõe a parte da sentença penal condenatória que se resume a questões de fato, isto é, à análise circunstancial sobre determinada conduta configurar um crime e quem a praticou. O juízo de culpa, assim, bem pode se conceituar como um dos capítulos da sentença penal condenatória. E este capítulo abrange matéria exclusivamente fática.

Estabelecida tal premissa, torna-se facilitada a compreensão do momento em que o juízo de culpa transita em julgado, tornando-se imutável.

Isso porque, pelo sistema recursal adotado no Direito Brasileiro, matérias de fato somente podem ser discutidas até a segunda instância. O juízo de primeiro grau analisa a materialidade e a autoria delitivas, e o tribunal a ele diretamente superior revisa, em recurso, as conclusões ali alcançadas. E isso se encerra com a apelação.

A partir daí, somente questões atinentes à legalidade do processo ou divergências de interpretação da lei – no Recurso Especial – ou temas constitucionais – no Recurso Extraordinário - podem permanecer sob discussão, o que, como visto, não abrange a culpa (materialidade e autoria). Em outros termos, nenhuma matéria fática, como a formação da culpa, é analisada nos recursos que sucedem à apelação, isto é, o Recurso Especial para o Superior Tribunal de Justiça e o Recurso Extraordinário para o Supremo Tribunal Federal.

Destarte, conjugando o conceito de coisa julgada e a teoria dos capítulos de sentença, torna-se patente que o juízo de culpabilidade, compondo capítulo próprio da sentença penal condenatória, se torna imutável com o julgamento do recurso de apelação, último momento de análise da materialidade e da autoria delitivas.

Consequentemente, pela interpretação sistemática do ordenamento jurídico, não há qualquer incompatibilidade em se reputar o réu definitivamente culpado com o esgotamento da prestação jurisdicional no recurso de apelação, pois é com este que se alcança o trânsito em julgado do juízo de culpa.

Sendo, justamente, a imutabilidade deste juízo a exigência constitucional acerca da presunção de inocência, conclui-se que nada obsta a imposição ao réu de que inicie o cumprimento de sua pena após o esgotamento da segunda instância. Afinal, a partir de então, já se opera o específico trânsito em julgado de sua culpa, exatamente ao que alude o texto constitucional.

À guisa de arremate, desse modo, e sob o prisma estritamente constitucional, tem-se que: (a) a sentença penal condenatória abriga, em capítulos distintos, o juízo de culpabilidade e o da aplicação da pena; (b) o capítulo da culpabilidade se assenta em matéria de fato, composta pela materialidade e autoria delitivas; (c) as discussões da culpa, isto é, de fato, se esgotam com o julgamento da apelação, com o encerramento da qual há o seu trânsito em julgado; (d) sendo a presunção constitucional de inocência firmada sobre o juízo de culpa, o réu há de ser considerado culpado após o julgamento da apelação; (e) firmada a culpa, não há impedimento constitucional ao início do cumprimento da pena.

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* Como citar este artigo (ABNT): REBELO, Fabricio. A prisão após a segunda instância sob a ótica dos capítulos de sentença.
Disponível em: [https://www.cepedes.org/2018/04/a-prisao-apos-segunda-instancia-sob.html]. Acesso em (inserir data).