sábado, 6 de dezembro de 2014

Desarmamento na Folha: devolvendo a honestidade intelectual ao louvável debate.

Uma análise corretiva imprescindível ao texto publicado na Folha de São Paulo em defesa do estatuto do desarmamento.
A Folha de São Paulo trouxe nesse sábado (06/dez) aos seus leitores um interessante debate sobre a revogação do Estatuto do Desarmamento, através de dois artigos contrapostos. Um deles é assinado pelo deputado Rogério Peninha Mendonça (PMDB/SC), autor de um projeto de lei que reformula a legislação sobre armas de fogo no Brasil, adotando uma sistemática de controle diferente da estabelecida no atual estatuto e, consequentemente, revogando-o. O texto de Peninha, obviamente, apresenta os argumentos para que seu projeto seja aprovado, valendo-se de dados objetivos, como o resultado do referendo de 2005, a redução de 90% no comércio de armas no país e o aumento dos homicídios, com o recorde em 2012 (56.337 mortes, ou 29 assassinatos para cada 100 mil habitantes).

Defendendo a manutenção do estatuto, o outro artigo é firmado por Julio Jacobo Waiselfisz, idealizador do Mapa da Violência, o parâmetro mais confiável para a quantificação dos homicídios brasileiros. E é uma pena que alguém responsável por um estudo tão conceituado jogue por terra, com erros estatísticos e factuais básicos, todo o prestígio de que deveria usufruir. As informações contidas no artigo em defesa do estatuto do desarmamento são intelectualmente constrangedoras.

Segundo Waiselfisz, o Estatuto do Desarmamento, de fato, não reduziu as taxas de homicídio no Brasil (um reconhecimento inegável). Porém, teria impedido seu aumento "num ritmo mais ou menos contínuo de 4% ao ano", que seria o verificado antes dele. Eis o primeiro problema grave no texto.

Além da imprecisão do "mais ou menos", o autor simplesmente não indica a que período se refere esse suposto aumento de 4% ao ano nas taxas de homicídio, o que, obviamente, impede qualquer comparativo minimamente sério sobre o antes e o depois da lei. Não fosse isso, os números amplos do próprio Mapa da Violência, disponíveis até 2012, contradizem a informação lançada no texto. Se, como diz Waiselfisz, a taxa de homicídios nove anos após o estatuto é apenas um pouco acima da última anterior a ele - o que já demonstraria seu fracasso -, nos nove anos completos antes da lei (1995 a 2003), ela cresceu, não 4% ao ano, mas 2,3%, o que, convenhamos, é muito menos.

O segundo erro crasso é que não se pode fazer, para a compreensão da segurança pública, projeções de crescimento de taxas criminais, seja de homicídios ou de qualquer outro crime que dependa da dinâmica social humana e de políticas públicas para a área. O campo estatístico na segurança pública é objetivo, e para ele valem as taxas anuais de homicídio concretas, exatamente como é computado no Mapa da Violência. Qualquer afirmação diferente disso é pura futurologia ou manipulação. De 2002 para 2003 – antes do estatuto -, por exemplo, a taxa de homicídios saiu de 28,5 / 100 mil para 28,9 / 100 mil (apenas 1,4% de aumento) e nem por isso é intelectualmente honesto dizer que havia uma tendência de estabilidade ou de crescimento mínimo.

Um fato concreto são as taxas médias de homicídio por período, as quais, estas sim, podem ser objetivamente mensuradas. Nos nove anos anteriores ao estatuto (1995 a 2003), a taxa média de homicídios no Brasil foi de 26,44 a cada 100 mil habitantes. Nos nove anos posteriores (2004 a 2012) foi de 26,8 / 100 mil. O que houve de concreto, portanto, não foi nada a respeito de tendências, projeções ou adivinhações, mas um aumento de 1,36%. Estes são os números.

O último erro grosseiro do articulista é vincular a variação das taxas de homicídios a campanhas de desamamento ou, principalmente, ao resultado do referendo de 2005. Ao contrário do que temerariamente é insinuado no texto, nunca houve proibição ao comércio de armas no Brasil que houvesse sido “derrubada” com o referendo de 2005, muito menos um “desarmamento pleno”, como ali se registra. O que houve foi a tão só manutenção do comércio desses artefatos, exatamente como o foi no período de dezembro de 2003 a outubro de 2005. Portanto, o resultado do referendo não recolocou armas na sociedade pelo comércio legal, pois ele nunca foi banido.

Por outro lado, não se pode fugir do fato de que o comércio de armas após o estatuto, mesmo com o resultado do referendo, foi reduzido em 90%, o que, evidentemente, barrou a suposta reentrada na sociedade das armas recolhidas em campanhas de desarmamento. O efeito dessas campanhas é cumulativo. Se armas são recolhidas e seu comércio se resume a 10% do que havia antes da lei atual, não há qualquer oscilação entre a quantidade de armas legais em circulação na sociedade, mas um declínio contínuo. Não por outra razão, o número de armas registradas no SINARM caiu de mais de 8 milhões, em 1997, para cerca de 600 mil atualmente. A vinculação entre o comércio legal de armas e as taxas de homicídio, portanto, é absolutamente insustentável – vocábulo, aliás, que intitula o artigo do deputado Peninha em referência ao estatuto.

O articulista é absolutamente honesto ao reconhecer que sua avaliação sobre os resultados do estatuto do desarmamento se pauta em “técnicas quase experimentais”. Isso, certamente, explica as conclusões que, enviesadamente, tenta fazer prevalecer sobre o tema. Mais honesto, contudo, seria reconhecer que sua experiência avaliadora é falha, exatamente como o é o experimento desarmamentista no Brasil, cuja reversão, para o bem da sociedade e como mostra a frieza objetiva dos números, é premente.


Fabricio Rebelo é pesquisador em segurança pública radicado em Salvador/BA, bacharel em direito e diretor da ONG Movimento Viva Brasil.
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